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segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Brincadeira de criança

De todo o coração, desejo-lhe o melhor Natal do mundo.

Mas a época, além de nos convidar a comemorar, presta-se, também, a que reflitamos.
A reportagem abaixo, de um realismo atroz, apresenta o ensejo a que pensemos e, afinal, tomemos uma atitude.

Convivemos com vários países dentro de um mesmo Brasil.

Essa é a infância de muitos brasileiros, que têm as suas fadas e bruxas, as suas casinhas, diferentes das que conhecemos.

Esse mundo existe, e está ao nosso lado.

As crianças retratadas na reportagem do Correio Braziliense desenvolvem-se em um mundo cruel, reproduzindo-o em suas fantasias infantis.

Seja por medo, por pena, por solidariedade, ou o nome que se dê ao sentimento que o motive, creio que devamos sair da inércia.


É o nosso país, são nossos irmãos, nossas crianças.

Que um dia serão adultas.

De modo que seus filhos fantasiarão, então, sobre os modelos que vivenciarão, num círculo vicioso.

Fonte: Jornal de Debates
13 11h28

Os brinquedos dos anjos
Os repórteres Ana Beatriz Magno e José Varella, do “Correio Braziliense”, investigaram durante 21 dias como brincam as crianças em favelas do Rio de Janeiro. O resultado é de arrepiar os cabelos.
Autor: Vicente Dianezi Filho - Participa desde: 23/12/2006
A reportagem foi publicada no dia 12 de outubro e se estende por um caderno especial de 12 páginas com o sugestivo título “Os brinquedos dos anjos”. O acesso ao “Correio Braziliense” não é free e, para produzir este comentário, comprei o jornal numa banca de revista. O lead começa assim:

Esta é uma reportagem sobre brinquedos e brincadeiras num Brasil despedaçado. Falaremos sobre pipas, bonecas, bolinhas de gude, fuzis de mentirinha e medos de verdade. Contaremos a história de meninos que brincam de boca-de-fumo, cheiram cocaína de areia e fazem de conta que os corpos no chão são heróis adormecidos num labirinto de morros no Rio de Janeiro.

Esta reportagem tem meu voto para qualquer um dos prêmios de jornalismo que se realizam em nosso país. De repente, vemos que o Correio Braziliense privilegia a reportagem, que, queiramos o não, é a alma do jornalismo em qualquer lugar do planeta. De repente, vemos que o problema do tráfico local ou internacional de drogas tem repercussões culturais muito mais profundas do que a contravenção prevista na lei.

Só a reportagem pode nos desvendar problemas entranhados na sociedade. Será que se houvesse reportagem o buraco do metrô de São Paulo teria acontecido? Será que, se houvesse reportagem, a compra de votos do mensalão teria chegado ao ponto em que chegou? Será que, se houvesse reportagem, a mídia teria cometido a injustiça da escola de base? Mas isto é assunto para outro momento.

A reportagem sobre as crianças das "comunidades" é um alerta para os brasileiros que defendem o brazão e cantam o hino brasileiro com a mão no peito nos jogos da seleção de futebol. Como estou digitando, vou reproduzir apenas os tipos de brincadeiras, dos medos e os depoimentos de crianças de 7, 8, 10 anos que encimam cada uma das páginas.

Brincar de Bondinho

Isso aqui é um fuzil Ak. Eu que fiz. Quando eu disparo todo mundo corre. A munição é a chapinha. Só arde se pegar no olho. A gente usa para brincar de bonde. Cada rua da favela tem o seu bonde e cada garoto tem a sua arma. Tem o AK, o AR-15, a Glock. Elas são diferentes. O inimigo é da outra rua. Somos todos bandidos. Não tem policía. A gente invade com as armas, gritando assim (faz voz grossa): perdeu, filho-da-puta, entrega, entrega, ra, rata, ratata!

Carlos Eduardo Oliveira de Paula, 10 anos.

Brincar de Boca

Hoje eu sou o dono da boca. Somos do Morro do Torto e esse aqui é o dinheiro do tráfico. Aquele outro montinho ali é a maconha de R$ 5 e esse aqui é o pó de R$ 11 (mostra três pilhas de cartas de baralho)

Lucas Oliveira, 11 anos.

Brincar de Pique-Facção

A vida é muito louca. A vida é uma escola. Ontem eu brincava de pique-facção. Hoje dou tiro de pistola. A vida é muito louca. Puta que pariu! Ontem aprendi a dar rajada de fuzil. Um, dois, três, lá vamos nós!

Meninos e meninas brincando na rua principal da Grota.

Brincar de Mãe, filho e enterro

— Minha filha, saia da varanda já! Os tiros começaram...
— Mamãe, me ajude! Está doendo.
— Oh, meu Deus! O tiro acertou minha filha. Então vamos pro enterro. (a menina pega uma boneca, veste e coloca dentro de uma banheiriha de plástico).
— É o caixão. É rosa porque ela é menina. Agora, a gente tem que arrumar uma flor. É pra mãe levar para o cemitério. A morta não tem pai. O pai dela também morreu.

Carol Lima, de seis anos, com a irmã, Camila, de dois anos.

Brincar de Boneca

Eu gosto de brincar de boneca. Essa é a que eu mais gosto. Ela se chama Ana Carolina e está se arrumando para ir ao baile funk com a sua melhor amiga, a Mia. Elas adoram co0nversar sobre namorados e safadeza. Safadeza é o que as adolescentes fazem no baile. É quase sexo. Sexo é um negócio que a gente tem. Eu nunca fiz. Nem minhas bonecas. A gente somos pequenas ainda.

Milena da Silva Romão, 10 anos.

Brincar de Bola

Meu filho não pode mais sair pra jogar bola na rua. Eu não deixo por causa da guerra. Era a brincadeira que ele mais gostava. Ele tem sete anos, chegou a ser chamado para a escolinha de futebol do Fluminense. Cada vez que tem tiroteio faz xixi nas calças, parece que o xixi sai sozinho. Meu filho está traumatizado. Quando ele sai da favela fica procurando placa de vende-se nas casas. Quando vê alguma, me mostra e fala assim: mamãe, olha ali, estão vendendo, vamos nos mudar...

Alessandra Vilira, 34 anos.

A reportagem também registra as velhas e convencionais brincadeiras de bolinha de gude, de queimada, de pipa e de inventar brinquedos. A brincadeira de pipa tem destaque especial na reportagem.

Mas uma das apurações me surpreende: é a brincadeira de aniversário. A criançada comemora e, depois dos parabéns, simulam uma beberagem de cerveja. Em seguida, resolvem que é a hora da cocaína e, como o convívio com a bandidagem faz parte da fantasia infantil, simulam a aspiração da droga, "esticando" carreirinhas formadas com areia fina.

O material do “Correio Braziliense” não é free, mas os repórteres Ana Beatriz Magno e José Varella concederam entrevista ao programa “Comitê de Imprensa”, apresentado pelo jornalista Paulo José Cunha, da TV Câmara que pode ser visto de graça aqui.

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